Elementos do mito da democracia racial no Brasil

O Império brasileiro ainda era recém-formado quando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foi instituído em 1838. Este foi um momento em que o Império estava sendo governado por uma Regência, não por um imperador. Período em que ocorreram inúmeras revoltas regionais (algumas separatistas), as quais, entre outros fatores, provocaram fortes preocupações em relação à manutenção da unidade nacional. Tínhamos ainda o Romantismo na literatura dos escritores de maior destaque no cenário nacional, como Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, muitos deles ligados à administração pública e ao poder político. Representantes daquela que ficou conhecida como a “primeira geração” do Romantismo brasileiro, suas obras eram marcadas pela exaltação das características, dos valores e dos símbolos nacionais. A partir de suas visões de mundo, exaltar o Brasil significava, muitas vezes, exaltar dois personagens primordiais, os índios e as matas, ambos percebidos de forma uniformizada e idealizada.

Poderíamos apresentar e discutir outros acontecimentos, atos e eventos, outras dimensões da realidade social, para caracterizar esse contexto do passado brasileiro, mas destaco esses a fim de pensar o momento intelectual e político em que a obra do almeão von Martius foi desenvolvida e publicada no Brasil. Minha preocupação aqui é apresentar alguns elementos que contribuam minimamente para o debate estabelecido entre a historiadora Lilia Schwarcz e o “sociólogo” Demétrio Magnoli em entrevista concedida para o Programa do Jô. E para falarmos sobre essa discussão, que passa pela formação do mito da democracia racial no Brasil e pela importância da política de cotas raciais nas universidades brasileiras, é importante conhecer os primeiros momentos do pensamento historiográfico do país, os quais passam pela fundação do IHGB (citado acima) e pela produção do brasileiro-alemão Francisco Adolfo de Varnhagen.


Diante do contexto histórico apresentado anteriormente, a obra de Varnhagen não poderia estar distanciada da busca pela identidade nacional, já que sua “História Geral do Brasil” foi escrita entre os anos de 1854 e 1857, momento em que o Estado imperial brasileiro estava conquistando fortalecimento político devido à legitimação social do poder exercido por D. Pedro II. Afinal, nenhum governo mantém seus alicerces políticos de poder sem uma cultura comum (dentre as singularidades e pluralidades encontradas em cada cultura) que o sustente ideologicamente. Nesse sentido, em meados do século XIX, o elemento fundamental para a consolidação desse “aparato cultural” para a manutenção do poder imperial era a construção de uma identidade nacional, pautada nas relações desenvolvidas entre os diferentes grupos, etnias e nacionalidades que compunham o Brasil.

Nesse contexto, o IHGB apresentou uma importância central para o forjamento dessa identidade nacional, pois era nesse espaço onde se produzia as principais interpretações sobre o passado colonial brasileiro. O IHGB era mantido por conta das contribuições de seus sócios – a maioria pertencente à elite burocrática imperial –, mas fundamentalmente pelo investimento do Estado, por meio de D. Pedro II, o qual, aliás, participava de várias reuniões do Instituto, traçando relações pessoais e políticas com os produtores da história brasileira naquele período.

Varnhagen, assim como os outros membros do IHGB, era de origem abastada, tendo angariado, inclusive, alguns títulos nobiliárquicos, como o de Barão e o de Visconde de Porto Seguro. Influenciado pelo texto em que o viajante e naturalista alemão Karl Philipp von Martius avalia a mistura das “raças” negra, branca e indígena como a maior das peculiaridades e originalidades do Brasil, o Visconde de Porto Seguro escreve a “História Geral do Brasil” com o objetivo de demonstrar a importância de cada uma dessas “raças” para a formação nacional.

Para assistir ao vídeo clique na imagem

No entanto, como vocês puderam/poderão visualizar no vídeo acima, essa contribuição não teria se dado, a partir do ponto de vista de von Martius, de forma equivalente entre os europeus, os africanos e os nativos. Na obra de Varnhagen, que representava o pensamento social e político hegemônico, visualizamos a mesma perspectiva. Para Varnhagen, os brasileiros deveriam ser percebidos a partir de suas diferenças e particularidades, mas apenas os portugueses do passado colonial eram valorizados, sendo vistos como superiores ao negro e ao índio. Para Varnhagen, o Brasil era positivo apenas naquilo que era entendido como extensão de Portugal e dos portugueses.

Poderíamos também discutir a formação do mito da democracia racial no Brasil a partir da obra de Gilberto Freyre, que escreve "Casa-Grande & Senzala" na década de 1930, mas tentei demonstrar como os fundamentos dessa invenção são ainda mais antigos. Não quero tornar este texto ainda mais extenso, por isso espero que assistam ao vídeo e agreguem mais elementos às sua reflexões sobre a política de cotas raciais no Brasil. O debate sobre as cotas raciais é muito mais extenso, mas desmitificar esse mito, que está sendo reelaborado por Demétrio Magnoli e outros "intelectuais" da grande mídia brasileira, é de fundamental importância.

Fonte das imagens (respectivamente): Blog CHST - Teste, Coluna Alfredo Júnior e Blog Um Historiador.

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